PT/EN

O quarto catálogo
No final da sua comunicação no Seminário Internacional Arquitectura [in] ]out[ política, organizado pela Trienal de Arquitectura de Lisboa 2010, Reinhold Martin, professor da Columbia University, deixou-nos, provavelmente, o repto que melhor interpela o slogan de todo esse evento: “Let’s stop talking about houses; let´s argue about houses.”
     Idêntica sensação nos fica da leitura dos três catálogos que o evento nos legou: a sensação de que, ao longo dos últimos meses, da Trienal de Lisboa à Bienal de Veneza, muito se falou e escreveu sobre casas, mas muito ficou por discutir a partir das mesmas.
     Não existe programa arquitectónico que melhor espelhe as mutações e perversões políticas, sociais e culturais das sociedades contemporâneas do que a habitação e, nesta perspectiva, o tema merece, hoje, uma visão obrigatoriamente holística – a casa é também, em lato senso, habitat.
     No entanto, e refém de uma visão eminentemente poética ou intimista – a que não será alheia a escolha do belo poema de Herberto Helder como ponto de partida –, a selecção de obras da Trienal de Arquitectura de Lisboa 2010 constrói um retrato consideravelmente “objectualizado” e “estetizado” desse mesmo habitat.
     Esse retrato pode ser reduzido, por simplificação, a uma série de dicotomias, de algum modo coincidentes com os dois principais pólos temáticos do evento, “Entre o Norte e o Sul” e “Concursos”, localizados, respectivamente, no Museu Colecção Berardo e no Museu da Electricidade – o projecto de autor na cidade “canónica” versus o projecto de autor na cidade dita “informal”; a “poética” proposta pelo arquitecto a um cliente culto, informado ou endinheirado, em Lisboa, Oslo ou Basileia, versus o “paternalismo” do arquitecto que desenha soluções redentoras para os habitantes ostracizados da Cova da Moura ou das cidades do Terceiro Mundo; enfim, a casa que valerá mais de 250 000 euros versus a casa que não poderá custar mais de 25 000 euros, para referir uma das condicionantes impostas aos arquitectos participantes no concurso A House in Luanda.
     Mas, então, onde se mostra o habitat que permanece entre esses dois extremos? Em que sítio se discute o espaço habitacional situado aquém da House of the Future e além do Patio and Pavilion, para voltarmos às recorrentes propostas de Alison e Peter Smithson de 1956, que serviram de referência aos dois pólos do evento? E que posicionamentos metodológicos e ideológicos se podem perseguir, hoje, para lá desse distanciamento (verfremdung) ou dessa mimetização (mimecry) do real, tão bem apontados por José António Bandeirinha num dos melhores ensaios escritos para este conjunto de edições?
     As respostas poderiam estar no terceiro catálogo Quando a arte fala arquitectura, resultado de uma multifacetada exposição presente no Museu do Chiado, com obras seleccionadas pelo próprio comissário geral da Trienal de Arquitectura de Lisboa 2010: o crítico de arte Delfim Sardo. No entanto, e como sabemos, a arte não é disciplinarmente “utilitária”, nem procura dar respostas aos problemas da arquitectura; coloca-nos, na verdade, perante novas leituras ou questões conceptuais lançadas por uma série de artistas que “falam” arquitectonicamente, como, de resto, nos lembra o próprio comissário, no seu aprofundado texto introdutório.
     Fica-nos, então, a ideia de que faltou, a esta Trienal, um quarto pólo expositivo e, consequentemente, um quarto catálogo, acrescentando, aos outros três, uma visão reflexiva, crítica ou ideológica sobre o habitat no seio da cidade contemporânea; algo que poderia ter sido suprido pela edição das comunicações apresentadas ao referido Seminário Internacional, se este, por sua vez, tivesse colocado a “casa” no centro do debate entre a arquitectura e a política (o seu tema), como apontava Reinhold Martin.
     Tal não aconteceu, e perdeu-se, por isso, a oportunidade de debater – e não apenas de “falar” – da casa enquanto espaço de problematização arquitectónica do urbano. Percorrendo estes três catálogos, sente-se a falta, por exemplo, de abordagens sobre: as diferentes formas culturais de habitar (impera aqui uma visão eminentemente ocidentalista); as transformações tipológicas face às novas recomposições da família urbana (contrariando a sua padronização pelo mercado imobiliário); os habitats flexíveis (face ao nomadismo global, ao turismo, ou ao impacto das migrações); os efeitos da gentrificação social nas cidades históricas (entre o alto standard e a habitação low-cost); a massificação habitacional nas megalópoles emergentes (por comparação entre o Sul e o Oriente); a reabilitação urbana e a participação bottom-up dos habitantes no retorno aos velhos centros (algo que interessaria ao panorama português); ou, enfim, fenómenos como os dos homeless ou o do squatting, amplamente debatidos noutros fóruns interdisciplinares. Esta agenda poderia certamente contrabalançar a referida dicotomia, tão extremada entre o diletantismo da “obra de autor” e a “estetização” do musseque.
     Dos três catálogos, rigorosamente paginados pelo designer Pedro Falcão, permanecem, ainda assim, momentos marcantes para a memória futura desta II edição da Trienal de Arquitectura de Lisboa 2010.
     Vejamos quais:
     • No catálogo Entre o Norte e o Sul e para além do já referido texto de Bandeirinha, destacam-se: o modo inteligente como os comissários nacionais, Luís Santiago Baptista e Pedro Pacheco, introduzem as “falas” de outros pensadores sobre a casa – notável o contributo de Gonçalo M. Tavares –, ou como o olhar cru da câmara de André Cepeda sabe captar a apropriação quotidiana das obras retratadas; mas também, o contraste involuntário (ou não) dos espaços quentes e lúdicos escolhidos por Peter Cook na Escandinávia, antecedendo a frieza suíça dos edifícios-máquina seleccionados (ironicamente?) por Diogo Seixas Lopes; ou, finalmente, a comovente redescoberta, proposta por Manuel Graça Dias e Ana Vaz Milheiro, de três arquitecturas eruditas deglutidas pela informalidade das cidades do Sul – o Bairro Prenda, em Luanda (de Fernão Lopes Simões de Carvalho), o Edifício Tonelli, em Maputo (de Pancho Guedes), e o Seminário Regional do Nordeste, no Pernanbuco (de Delfim Amorim). Este é um daqueles raros momentos em que o olhar dicotómico da Trienal se dissolve, por momentos, no ar quente dos trópicos.
     • No catálogo respeitante aos “Concursos” é de notar a variedade de soluções propostas nos 30 trabalhos seleccionados, respectivamente, para a House in Luanda e para o Concurso Universidades: Cova da Moura; ainda que, na maioria dos casos, as imagens maculadas e brutais que retratam os contextos choquem com o traço “limpo” e “politicamente correcto” das visualizações tipo photoshop ou das maquetas agora editadas.
     • Por fim, no catálogo Quando a arte fala arquitectura edita-se uma sucessão significativa de obras de arte que captam ou corporizam o espaço arquitectónico e urbano, devolvendo-o sob a forma de desenho, pintura, fotografia, escultura ou instalação. Da selecção, entre obras marcantes de artistas nacionais e estrangeiros, destacam-se os “projectos específicos” (re)produzidos para o evento, como acontece com o “penetrável” de Ângela Ferreira Walk through, um reflexo sobre esse espaço (in)comum onde se cruzam a arte e a arquitectura, mas também uma metáfora exemplar dessa (tantas vezes evitada) miscigenação entre o sublime e o banal.
     Eis portanto, um retrato breve do material exibido pela Trienal de Arquitectura de Lisboa 2010, o qual, repartido estrategicamente por catálogos separados, permite a autonomização desses três “discursos” passivos sobre o habitat. “Falemos de casas” então, mas falemos, a fechar, do envolvimento do recente grupo editorial Babel (através da chancela Athena) nestas cuidadas publicações, o que só pode augurar boas perspectivas futuras para outras edições suas, no âmbito da arquitectura, elevando, certamente, os padrões de exigência neste mercado português tão saturado por produtos editoriais avulsos e incoerentes. |


VER livro 1 #234
VER livro 2 #234
VER livro 1 #235
VER livro 2 #235
VER livro 1 #236
VER livro 2 #236
VER livro 1 #237
VER livro 2 #237
VER livro 3 #237
VER livro 1 #238
VER livro 2 #238
VER livro 3 #238
VER livro 1 #239
VER livro 2 #239
VER livro 3 #239
VER livro 1 #240
VER livro 2 #240
VER livro 3 #240
VER livro 1 #241
VER livro 2 #241
VER livro 3 #241
VER livro 1 #242
VER livro 2 #242
VER livro 3 #242
VER livro 1 #244
VER livro 2 #244
VER livro 3 #244
 FOLHEAR REVISTA